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19 Juni, 2017 Prostituição Antes do 25 de Abril: Relatos de mulheres que se prostituíam

O retrato na primeira pessoa de quem se dedicava à "mais velha profissão do mundo".

Na segunda parte da grande reportagem em torno da Prostituição Antes do 25 de Abril, vamos traçar o retrato das mulheres que se prostituíam, com relatos na primeira pessoa de quem se dedicava à "mais velha profissão do mundo" no tempo de Salazar.

Prostituição Antes do 25 de Abril: Relatos de mulheres que se prostituíam

Leia ainda os outros tópicos desta grande reportagem sobre a Prostituição Antes do 25 de Abril:

+ As Toleradas
+ As Madames de luxo do tempo de Salazar
+ O escândalo Ballet Rose
+ Homossexualidade, repressão e tortura

"Mulheres de mau porte"

As mulheres que se dedicavam à prostituição eram vistas, durante o Estado Novo, como degeneradas. Médicos conceituados como Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina de 1949, e Tovar  de  Lemos,  director  do  Dispensário  de  Higiene Social  de  Lisboa que inspeccionava e tratava as DST´s das "toleradas", consideravam mesmo que algumas mulheres nasciam com propensão para a prostituição.

Eram conhecidas como "mulheres de mau porte" e doenças como a sífilis e a tuberculose eram associadas à prostituição.

Tovar de Lemos caracterizava a prostituta típica como "jovem, solteira, desinstruída, de origem rural, precocemente desflorada por um abusador, com ocupações variadas e precárias, nomeadamente, criadas, domésticas, operárias, costureiras, vendeiras, coristas e camponesas", conforme escreve Alexandra Esteves no livro "Entre o sanitarismo e a assistência: o serviço de inspecção e tratamento de toleradas do Dispensário de Higiene Social de Lisboa nos inícios do século XX".

Entre 1933 e 1946, a  idade  das  "toleradas" inscritas no Dispensário de Higiene Social de Lisboa oscilava entre os 11 e os 52 anos, estando a maioria na faixa entre os 18 e os 27 anos de idade.

Muitas eram criadas de servir ou operárias que ou eram abandonadas por namorados que as deixavam grávidas e sem dinheiro, ou violadas pelos patrões ou pelos filhos destes, acabando por vender o corpo como única solução de sobrevivência.

Havia prostitutas de "maior categoria" que trabalhavam em bares frequentados pelas elites da altura, homens ricos. Actuavam como "alternadeiras", incentivando o consumo de bebidas destes clientes endinheirados, e depois prestavam os serviços sexuais em casas à parte.

As prostitutas de "menor categoria" trabalhavam em casas de passe ou na rua.

Violadas pela polícia

As que eram apanhadas a trabalhar como clandestinas, eram presas e acabavam por sofrer todo o tipo de abusos da polícia, especialmente as mais pobres que não tinham dinheiro para subornar os agentes. Algumas eram violadas mesmo na rua, onde eram apanhadas, outras eram violentadas nas esquadras.

Na altura, quase todos os polícias recebiam dinheiro ou serviços sexuais - ou ambos - para "esquecer" a idade das meninas, a falta de matrícula e do visto de inspecção, desde o agente mais raso ao mais graduado.

Na tese de mestrado em História Contemporânea de Ana Maria Alves, intitulada "Percursos de Vida: A Prostituição no Porto na Década de 60/70", podemos encontrar o relato de Delfina, uma empregada de limpeza de uma casa de prostituição que ilustra bem esta realidade de violência policial.

"A primeira vez que fui presa o guarda dizia: anda puta mostra o que vales. Usou o meu corpo as vezes que lhe apeteceu e como quis, obrigou-me a fazer de tudo. Tudo se passou dentro da esquadra com o colega, a gozar e a espreitar se vinha alguém. Das que fomos presas, nessa noite, foram poucas as que ficaram, as outras saíram rapidamente."

Exploradas pela própria mãe

A tese da historiadora Ana Maria Alves é um raro e interessante documento sobre o ambiente de prostituição que se vivia no Porto, por alturas do Estado Novo, reflectindo também, aquela que era a realidade um pouco por todo o país.

A investigadora conseguiu recolher o testemunho de várias mulheres que se dedicaram à prostituição e que aqui vamos transcrever de seguida, com o intuito de traçar o perfil de quem se dedicava à actividade, bem como das condições que enfrentavam.

Julieta, nascida em 1930, filha de pai incógnito e de uma criada de servir, é um exemplo trágico e bem característico das mulheres que, nos anos de 1940 e por aí fora, se prostituíam.

"Aos 11 anos a minha mãe, criada de servir, deu-me a um homem com filhas mais velhas do que eu. Esse homem fechou-me numa casa de alterne da rua do Almada. Ninguém se preocupou comigo. Como não gostava de estar presa, nem do que ele me obrigava a fazer, fugi. Vivia na rua, como sempre vivi, quando a minha mãe não pagava às amas.
Quando fui levada para a casa da rua do Almada era tão pequena que sempre que havia uma rusga as mais velhas escondiam-me debaixo das saias. A polícia nunca me apanhou. O homem que me levou visitava a casa com frequência, não sei se ia com outras mulheres. A mim levava-me para o quarto e obrigava-me a dar beijinhos naquele sítio."

Apanhada na rua a vadiar, Julieta foi presa e enviada para a Tutoria, uma instituição de reeducação de jovens "em perigo moral". Mas quando foi apanhada a brincar aos casais com uma colega da instituição, e como contestou a repreensão de que foi alvo, acabou por ir para a prisão de Peniche - na altura, o fantasma da homossexualidade era um "perigo" ainda maior do que a prostituição.

Com 16 anos, Julieta voltou a ser acolhida pela mãe e pelo amante, o homem que a prostituiu e que, desta vez, concretizou relações sexuais com ela. Engravidou e decidiu dar um futuro melhor para a filha, dedicando-se de livre vontade à prostituição.

Transformou a mãe que a tinha vendido na ama da sua filha, pagando-lhe um salário, e confessa que ganhava muito dinheiro para a época porque era "uma brasa". Não era uma prostituta de vão de escada, mas "de categoria mais elevada", e diz que nunca teve chulos que "levavam o dinheiro todo às desgraçadas".

"Eu fazia parar o trânsito. Vaidosa e limpa sempre fui e sou. Tomava banho todos os dias, o que era raro no meu tempo, ia, como vou com frequência, ao cabeleireiro para arranjar o cabelo e as mãos. Quando cantava o fado, deixava os homens tolinhos!"

Ninguém da família de Julieta conhece o seu passado, nem tão pouco que foi com o dinheiro ganho "na vida" que conseguiu pagar os estudos da filha e dos netos que são "doutores".

Também foi ela que pagou os tratamentos da mãe contra o cancro da mama e todas as despesas, incluindo uma enfermeira que cuidava dela durante o dia.

"Era melhor receber homens do que roubar"

Aquilo que é comum nas histórias das mulheres que se dedicavam à prostituição na altura do Estado Novo é a pobreza. No caso de Maria das Dores, nascida em 1940 e que, aquando da entrevista com Ana Maria Alves para a sua tese, era dona de quatro casas de passe, foi a morte do marido que despoletou a sua entrada na "má vida", diz ela.

"Entrei na vida depois da morte do meu marido. O que ganhava como mulher-a-dias não chegava para pagar as despesas. Ajudas naquele tempo não havia. Era melhor receber homens do que roubar.
Cheguei a ser presa, mas como tinha dinheiro, pude pagar a um advogado, que disse ao Dr. Juiz que eu não era escandalosa, só recebia homens por necessidade para sustentar os meus filhos. Fui logo absolvida. O Sr. Chefe apresentava-me sempre como
um exemplo de puta que ganhava para ela, já tinha prédios em seu nome e estava cheia de dinheiro, enquanto as outras sustentavam os chulos e morriam na miséria. A maior parte das que conheci morreram na valeta. Ninguém queria saber delas, os chulos desapareciam, iam procurar outras que rendessem."

Já Evangelina, reformada da indústria têxtil que tinha 71 anos quando foi entrevista por Ana Maria Alves, tinha marido, mas mesmo assim, quando mais nova, tinha que se deitar com um homem a troco de dinheiro para alimentar os filhos.

"Não considero que me tenha prostituído. Tive um senhor muitos anos que me ajudava, tinha pena da fome que os meus filhos passavam. Os nossos encontros eram semanais, em casa de uma amiga. O marido trabalhava todo o dia e ela ficava em casa para tomar conta dos filhos. Era tudo com muito respeito. Era bom para as duas, ela recebia um dinheirinho pelo quarto, sem o marido saber, eu vivia mais desafogada. O meu marido nunca soube. A vida ficou melhor e ele nunca fez perguntas."

E foi precisamente, depois de perder o "respeito", como se tinha ideia naquela época, que Maria, nascida em 1934 numa pequena aldeia, com sete irmãos, caiu na prostituição, após ter engravidado de um rapaz "alto, bonito, bem falante" com quem perdeu a virgindade e que lhe prometeu "casamento e uma vida de felicidade".

Ela tinha 13 anos e tinha ido para a grande cidade trabalhar como "criada de servir", depois da morte dos pais. Quando se viu grávida, o pai da criança desapareceu, foi despedida e expulsa da casa onde servia. Ainda pediu esmola nas ruas, onde acabou por encontrar o caminho da prostituição.

"A minha passagem pela prostituição, graças a Deus, não foi muito longa.
Nunca fui presa. Trabalhei sempre na rua, ia com os homens para as pensões da zona, chamadas pensões de trânsito. Dinheiro? Ganhei pouco. Eu só atendia os homens que me garantissem a quantia que precisava para comer e pagar o quarto. Aqueles homens metiam-me tanto nojo. Não sabe o que me custa falar disso, parece que estou a viver tudo.
Aquele era um dinheiro maldito, sujo. Odiei todos os homens que se puseram em cima de mim, porcos, bêbados, pareciam animais. Obrigavam-me a fazer de tudo mesmo com a barriga ao pé da boca. Eu tinha fome, o que podia fazer? Roubar isso não, por nada deste mundo, por isso preferi fazer mal ao meu corpo."

A história de Paula Madeirense (o seu nome de "guerra"), nascida em 1948, é também marcada pela pobreza, com uma mãe viúva e muitos filhos. Sem saber escrever ou ler, deixou a Madeira e migrou para o Continente à procura de uma vida melhor. Começou por ser criada de servir e depois, o que viria a ser o pai dos seus filhos, um homem casado, "montou-lhe casa". Mas quando este morreu, caiu na prostituição.

Começou por trabalhar na lavandaria de um hotel de dia e numa boîte à noite, onde era "alternadeira". Mas acabou por dedicar-se só à prostituição que lhe rendia mais dinheiro.

Tinha 60 anos quando foi entrevistada por Ana Maria Alves e ainda trabalhava como prostituta na rua. Contou à historiadora que a filha tentou tirá-la da vida, que a levou para a sua casa e impôs-lhe regras (não fumar, não beber, nem sair de casa sozinha). Mas ela não aguentou, andou à pancada com a filha e voltou à "vida" na rua.

Gina Maria

Gina Maria

Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.

"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]

+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas) 

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