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04 December, 2020 O estranho caso do enigma misterioso - Parte I

(Ilustrações de Xana Pascual)

A coisa, para ser sincero, não andava famosa. Ser detective privado pode parecer glamoroso aos olhos de um leigo, mas para um profissional de tantos anos, como eu, não passa de um jogo de paciência e, principalmente, de espera. Espera que um suspeito meta a pata na poça… Espera que um marido adúltero cometa um deslize… Espera que o gato desça da árvore… E em tempo de crise, espera, sobretudo, clientes.

O estranho caso do enigma misterioso - Parte I

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Por isso, foi com algum alívio que, após semanas sem aparecer vivalma, ouvi bater à porta do meu gabinete.

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As pancadas acordaram-me de um transe maravilhoso, fantasioso, burlesco… Especialmente bem orientado para a punheta vespertina que um homem da minha idade não dispensa.

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Menos mal que atrás do vidro martelado se revelava uma silhueta marcadamente feminina. Se não desse para mais, pelo menos garantia uma sessão gratuita de bilhar de bolso…

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– Entre!

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Uma verdadeira diva, sensual e perfumada, penetrou na minha sala. Parecia acabadinha de sair de um filme do Bogart. Pôs-me logo de pé!

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– Bem-vinda aos meus modestos aposentos. Por favor, fique à vontade.

Sabia perfeitamente de quem se tratava. Não se anda nos cantos mais sujos desta terra sem pisar a merda que os personagens deixam pelo caminho. Mas fingi-me de parvo, que no fundo é só uma maneira de nos armarmos em espertos.

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A deusa instalou-se como se se sentasse numa poltrona do Ritz, elegantemente indiferente à balbúrdia caótica que a rodeava.

Nunca fui tipo de desempoeirar o que quer que fosse, o que significa que às vezes merdas se acumulam… Mas ela, superior como uma rainha protegida, por artes divinas, da podridão humana, ignorava o ambiente com o que só se pode chamar “uma pinta do caralho”!

Uma senhora puta, na verdadeira acepção de ambas as palavras.

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Olhei-lhe para as pernas como se lhas quisesse comer à dentada. Nunca cometam o erro de tratar esta gente com pudor.

– Em que posso ajudá-la?

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Então ela contou-me tudo. Suspeitava, há muito, que o marido a traía. Queria provas para poder separar-se dele de uma vez por todas. Queria deixar para trás a vida perdulária.

Por breves instantes distraiu-se da sua personagem de femme fatale e soou completamente honesta. Mas rectificou logo a fraqueza e voltou aos seus ares de gaja que já viu demasiados quilómetros de picha para alguma vez voltar a ter medo de uma. Não havia dúvidas de que era “poderosa”.

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O problema que ela apresentava, no entanto, desdobrava-se noutros dois, nenhum deles de menor monta.

Em primeiro lugar, o marido da lady não era um pacato cidadão anónimo, respeitável talhante, contabilista fuinha ou invisível manga-de-alpaca de loja a retalho: era Don Clericuzio, apenas e só o chefe da máfia de Chicago!

Como se esse primeiro coice não fosse suficientemente brutal, ela acrescentou que o marido, à boa maneira antiga como professavam as tradições sicilianas, lhe comprava tudo o que ela queria mas nunca lhe passava dinheiro para a mão. Como as jóias estavam todas inventariadas… não teria como pagar os meus serviços.

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– A não ser… –  pigarreou – …que não se importe de ser pago doutra maneira.

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Adoro quando uma mulher pigarreia. Para além disso, não sou do tipo que se faz rogado, muito menos quando dentro das calças tenho um cacete às marradas.

Expliquei-lhe que os meus honorários variavam conforme o tempo de investigação e, dito isso, abri o fecho das calças. Quando a linguagem é comum não é preciso dizer mais nada.  

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– Nesse caso, espero que demore muito tempo… – respondeu, sem espinhas, puxando-me as cuecas para baixo.

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Segundos depois estava a mamar-me nos calzones como se mos quisesse arrancar pela raiz.

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Há mulheres que nascem para chupar caralho e ela era dessas. Havia certamente todo o mérito no facto de já ter chupado os caralhos mais proeminentes da cidade. Era o chamado broche de categoria, broche de berço.

Fora, de resto, a sua fama de brochista diplomada que a conduzira ao destino que perseguia desde tenra idade: ser a mulher de um homem poderoso.

Era um sonho simples, o seu cliché, a menina do campo que não gostara do campo e viera para a cidade em busca do seu lugar de destaque. Não a incomodava que fosse um lugar ornamental, conquanto o homem que ela favorecesse fosse abençoado com fortuna e poder.

No campo, onde tudo era demasiado anónimo e sem glamour, ela vivera aprisionada aos convencionalismos e ao contexto. Na cidade o sangue corria e ela era jovem, portanto, não queria muito: apenas o mundo. Encontrara-o, este e o outro, ao cair nas boas graças de Don Clericuzio.

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Aquecido com a distinção, assim como com os seus talentos de sucção, calculei que para início da investigação o pagamento já chegava e, sem poder conter mais a tusa, derramei o leitinho em cima dela. Nunca fui pessoa de guardar o que me vai na alma.

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Ela não protestou, limitou-se a puxar do lenço e limpar a cara como se tivesse acabado um bisque de camarão.

Tivesse eu notas de cinco como as vezes que aqueles lábios já pingaram esporra… Da aristocrática e da proletária, pois até se cingir aos poderosos mamou muito pau de trolha pelo caminho. Assim, aliás, é que se aprende.

Tinha começado por baixo, sim. Mas era isso que a distinguia das mulheres de berço incólume. Não conhecia limites nem pudores, nem se escudava com dores de cabeça ou outras religiosidades. Com ela, os homens eram felizes. Ratas que ascendem a tronos não raras vezes nascem em sarjetas, e os homens de poder sempre foram fascinados pelo ordinário, como se o acto de se relacionarem com a escória os tornasse mais humanos.

Enfim, deixei-a a limpar as ventas e fui tratar do caso, que era para isso que me pagava.

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Nas minhas diatribes enquanto detective privado deparara-me muitas vezes com o nome Clericuzio. Surgia em todo o lado, metido em tudo. E era por demais conhecido o reino de terror que havia instaurado em certas áreas da cidade.

Felizmente para o meu aparelho respiratório, nunca tivera necessidade de lidar com ele directamente. Havia histórias suficientes a circular para se ficar feliz com isso…

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Agora a sua mulher pedia-me que o vigiasse por suspeitar que lhe punha os palitos. Óbvio que isso não constituía uma razão mas um pretexto. Estava-se mais que cagando para as putas que dormiam com o marido, mas no momento a história era conveniente para o fim que tinha em vista, provavelmente com um bom pecúlio já amealhado. Ela não era parva, fizera-se de parva enquanto lhe deu jeito.

Mas isso significava que a questão era pessoal, não negócios… E isso era sempre perigoso, o pior de tudo, quando se tratava da máfia. La famiglia era tudo para eles.

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Tive que dizer a mim próprio que não era altura para hesitações. Tinha um caso e isso era tudo. Nunca me armei em esquisito nem com os clientes nem com estivesse do outro lado. Para mim nunca foi pessoal, apenas negócios. Esperava que, se chegássemos a algum dilema sobre isso, os meus adversários soubessem reconhecer a diferença.

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Sabia bem onde encontrar o Don… Toda a gente sabia.

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A pior espelunca dos bairros perigosos, por onde só circulava a “nata”, o creme de la creme mais rasteiro da sociedade. Putas, chulos, pedófilos, narcos… Senti-me imediatamente em casa.

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Sabia que era uma questão de tempo até o Don cumprir o ritual sagrado e aparecer, sempre rodeado da corja mais corrupta, políticos, diplomatas, juízes reformados, na sua mesa de poker, onde apenas se sentavam as maiores fortunas e os piores feitios da cidade. Capone e Rothstein eram regulares.

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No entanto, as horas passaram e nem sinal do homem. Depois de três bourbons mal aguados, sentia o sangue a morrer no corpo. De resto, tudo parecia moribundo à minha volta. A banda estava bêbeda…

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… o poker estava morto…

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…as empregadas pareciam saídas de calendários de oficinas do século passado.

Uma delas perguntou-me o que queria beber. Não sei porquê, imaginei imediatamente que lhe metia o caralho entre as mamas enquanto lhe enfiava uma salsicha gigante pela boca abaixo!

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Enjoado, mandei-a de volta para a unidade transformadora de carne de onde tinha saído e virei atenções para a única presença na sala que me parecia minimamente sensual.

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Convidei-a a sentar-se e, depois de lhe pagar uma zurrapa qualquer que me custou os olhos da cara, pôs-se a grasnar como um chibo bilingue.

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Fiquei a saber que era quarta-feira e que portanto o Don nunca ia ao poker. Era dia de se encontrar com os velhos compinchas da maçonaria. Deu-me a morada da loja e tudo, a imbecil. Se eu fosse um assassino, o Don tinha as horas contadas…

Agora que já me tinha dito o que eu queria, queria ela coisas também. Gostaria de lhe lamber a racha? Estava muito molhada por estar ali a falar comigo, a sentir-me perto dela. Gostava do meu cheiro e das minhas mãos fortes. Gostaria que me metesse um dedo no cu? Também queria que mandasse vir uma garrafa de champanhe. Estava a ver-me negro para a despachar…

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…quando apareceram dois tipos e, sem perguntar nada, levaram-na pelo ar como se fosse uma pena.

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Vinte segundos depois estava ambos a espetá-la em cima da alcatifa. Aguentava-se com largueza nos dois buracos e parecia feliz.

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Depois daquilo nem valia a pena pagar a conta... Deixei para trás aquele pardieiro e pus-me a caminho da morada que a gaja me deu.

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Mal me aproximei do local percebi que estava no sítio certo. Melhor que isso, chegara na hora exacta. O Don acabava de sair do carro e ia na direcção da casa onde era aguardado.

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Lá estava ele, em toda a sua magnificência. Don Clericuzio, previamente conhecido por “A besta”, homem maior que os demais, com fama de enfrentar os adversários sem armas, só as que a natureza lhe deu. À sua volta o séquito de guarda-costas, escolhidos com precisão científica. Davam todos eles a sua quota de serviço aos cemitérios locais.

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Uma entrada dramática estava fora de questão. A guarda pretoriana d’A besta não se limitava a guardar a porta, controlava o quarteirão.

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Mas, como eu sempre digo, há duas maneiras de resolver um problema: encará-lo de frente ou aguardar a oportunidade, apanhá-lo por trás e ir-lhe ao cu!

Quanto a mim, sempre tive uma preferência pelas portas traseiras…

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Pena que a lady não me pudesse ver agora. Tenho a certeza que ficaria impressionada com a minha destreza física, para além dos meus dotes de dedução. Ou então estou completamente enganado e ia achar-me um verdadeiro idiota, a fazer-me passar por aquilo que há muito já não sou…

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É certo, doem-me os ossos, mas ainda se me anima o espírito. O furor da caça, sem dúvida. Quando em missão, ainda consigo ser o velho gato!

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Aproximava-se a hora de cometer perjúrio na sociedade criminosa e violar a intimidade do Don. Se eu fosse um soldado da máfia, se visse, mesmo inadvertidamente, algo que não devesse ter visto, amanhã a minha mãe receberia dois robalos enrolados numa folha de jornal a informá-la que o filho estava a dormir com os peixes. O mesmo destino me esperava se fosse apanhado agora.

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O medo é algo que vive nos ossos do detective, pois sabemos o que nos espera. Mas aprendemos a viver com isso.

Já em relação ao que me esperava quando abri a porta, tenho que confessar que nada me poderia ter preparado para aquilo que os meus olhos testemunharam.

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Mesmo nos limites da perversão, era demasiado rebuscado para ser imaginado…

 

O estranho caso do enigma misterioso - Parte II

 

Armando Sarilhos

Armando Sarilhos

Armando Sarilhos

O cérebro é o órgão sexual mais poderoso do ser humano. É nele que tudo começa: os nossos desejos, as nossas fantasias, os nossos devaneios. Por isso me atiro às histórias como me atiro ao sexo: de cabeça.

Na escrita é a mente que viaja, mas a resposta física é real. Assim como no sexo, tudo é animal, mas com ciência. Aqui só com palavras. Mas com a mesma tesão.

Críticas, sugestões para contos ou outras, contactar: armando.sarilhos.xx@gmail.com

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