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05 agosto, 2021 Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte Final

Hoje seguimos com a parte final da entrevista com a Dra. Alexandra Oliveira. Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte Final

Para quem chegou agora, recomendo que leia as outras duas partes. (Parte I e Parte II). Sem mais delongas, vamos à parte final da entrevista.

 

Suzana F. - Quais as coisas que considera mais importantes na implementação de boas práticas quanto a estes profissionais de primeira linha voltadas à pessoas transgêneras, sem acesso a médico de família, pessoas sem recursos financeiros, como você acha que eles poderiam fazer isso?

Alexandra Oliveira - Primeiro estar atentos a todas essas questões e características das pessoas com quem trabalham. Nem sempre os técnicos de terreno têm tempo, disponibilidade para atuar fora do que é o seu trabalho de rotina, daquilo que é o mais imediato do terreno. Às vezes, basta uma breve conversa para se ir para além disso e poder, depois,  encaminhar e acompanhar as pessoas. Quem está no terreno não tem como resolver todas estas coisas de um dia para o outro, mas pode sempre  fazer um trabalho em rede. Os projectos, se quiserem fazer um bom trabalho, têm de trabalhar em rede e estar associados com uma série de outros organismos que intervêm em outras áreas que podem dar resposta a valências que o projeto não tem. Por exemplo, se se deparam com alguém que está com uma situação de extrema precariedade económica, que está ao nível da pobreza, têm que fazer um trabalho de interligação com a Rede Anti-Pobreza, com a Cáritas, com quem trabalha especificamente estas questões de exterema necessidade económica.
Se se deparam com uma mulher grávida que não está a ser seguida, é conveniente ter um protocolo com uma maternidade para onde encaminhar a mulher, como, por exemplo, o Centro Materno-Infantil do Norte, se estiverem na zona do Porto. Porque não é x psicólogx de terreno, x educadorx social ou x enfermeirx que pode resolver tudo no imediato, mas podem pelo menos trabalhar em rede de forma a dar resposta às diferentes necessidades das pessoas.

Suzana F. - Como profissional o que você acha que pode ser feito imediatamente para alterar este cenário de falta de confiança, de baixa procura por apoios, numa altura de pandemia em que estamos a ver só o mínimo das consequências a nível psicológico de pessoas já de si estigmatizadas? O que pode ser feito neste sentido?

Alexandra OliveiraNa minha opinião, o que deveria ser feito era olhar de forma diferente para o trabalho sexual. Isso não se faz por mágica, mas todos nós podemos contribuir.
Vou dar um exemplo da minha própria experiência que acho que dá um contributo para isto. Quando, por exemplo,  falo para a comunicação social, faço-o com uma determinada perspectiva sobre o trabalho sexual, que é uma perspectiva baseada nos direitos humanos. Tento passar uma imagem das pessoas que fazem trabalho sexual como pessoas capazes de decidirem sobre si e sobre a sua própria vida, contrariando os estereótipos vitimizantes e infatilizantes que existem sobre xs trabalhdorxs do sexo. Isto, individualmente,  não chega para mudar a sociedade, mas vai dando um contributo para contrariar a narrativa única sobre as pessoas que fazem trabalho sexual e que é uma narrrativa que as coloca a todas como vítimas, que equipara prostituição a tráfico, etc.  As imagens que a maioria das pessoas tem acerca do que é uma prostituta, do que é prostituição, são o resultado da forma como somos aculturados, através da comunicação social, da família, da escola, da igreja, e isso não se muda de um dia para o outro.

Acho que as pessoas que nos governam também podem ter um papel importante nisso ao redefinir o trabalho sexual como um trabalho, ao rejeitarem a ideia vitimizante do trabalho sexual, ao não associarem o trabalho sexual com tráfico e exploração sexual, ao terem programas que fossem dirigidos aos trabalhores do sexo e que ajudassem aquelas pessoas que têm de facto questões específicas, aquelas pessoas que querem deixar a actividade, mas que simultaneamente também permitissem o reconhecimento da profissão do trabalho sexual com o reconhecimento de direitos. O trabalho sexual, se fosse um trabalho reconhecido como os outros – embora eu não diga que  é um trabalho como os outros, primeiro porque os trabalhos são diferentes uns dos outros e, depois, porque o trabalho sexual tem aspetos muito específicos que podem torná-lo mais perigoso e mais exigente. Digo um trabalho como os outros em termos de direitos reconhecidos, porque, por exemplo, uma mulher que faz trabalho sexual e que engravida não tem direito a uma licença de maternidade. As pessoas que fazem trabalho sexual não têm direito a férias pagas, não têm direito a um 13º mês, não têm direito a baixa por doença.

Eu acho que se o estado reconhecesse esses direitos aos trabalhores do sexo, reconhecendo que são pessoas que trabalham como as outras e que merecem o nosso respeito, era um bom sinal que davam para a sociedade.

Se o próprio estado dissesse “estas pessoas merecem o nosso respeito e, portanto, vamos reconhecer os direitos delas”, essa ideia começava a entrar nas pessoas em geral e começavam a pensar “se calhar eu tenho que mudar minha perspectiva”.

Nós sabemos que toda a legislação relativa ao trabalho sexual a nível mundial não tem tido bons resultados. É óbvio que se criminalizarmos e dissermos que as pessoas que fazem trabalho sexual são criminosas e têm que ser presas, isso é pior do que o sistema que temos em Portugal que não reconhece e que também não persegue as pessoas que exercem a prostituição de forma autónoma, sozinhas, sem nenhum intermediário. O único modelo que, até agora, mostrou resultados muito bons, que tem sido avaliado muito positivamente é o modelo Neozelandês – este modelo foi aplicado na Nova Zelândia e,  antes disso, já tinha sido implementado no estado de Nova Gales do Sul da Austrália.

As avaliações têm sido positivas a diversos níveis, ao nível da saúde, ao nível da auto-estima das pessoas que estão na atividade, na diminuição do estigma, da relação com a população e da relação com a polícia. Há um aspecto negativo que é o de não terem incluído as mulheres migrantes na possibilidade de também estarem ao abrigo desta legislação, mas também é preciso olhar para o contexto neo-zelandês em que as questões da migração não se colocam como na Europa.

Há um relatório que faz uma avaliação do impacto da legislação ao longo dos primeiros 5 anos da sua implementação e uma das coisas que xs trabalhadorxs do sexo, que foram entrevistadxs, dizem é que um dos efeitos da mudança da lei foi: “Eu passei a sentir-me melhor com aquilo que faço, eu passei a poder falar mais à vontade da minha actividade, eu sinto-me menos mal com aquilo que faço”.

Uma das coisas que o modelo neozelandês conseguiu foi diminuir o estigma associado ao trabalho sexual, que é o oposto do que fez o chamado modelo sueco, o modelo de perseguição aos clientes, que não dimimuiu ou acabou com a prostituição, mas conseguiu aumentar o estigma sobre as pessoas que fazem trabalho sexual, e sabemos que o estigma está na base da violência, que o estigma tem um impacto muito negativo nas pessoas que fazem trabalho sexual.
Acho que uma mudança legislativa que fosse feita em prol dos direitos dos trabalhadores do sexo, que não fosse feita só a pensar na saúde pública, na ordem pública, mas a pensar nas pessoas que fazem trabalho sexual e a pensar nos seus direitos, que as ouvisse, seria muito positiva. Uma das vantagens da Nova Zelândia é que o coletivo neozelandês de prostitutas esteve envolvido nesta alteração da lei e pôde dar o seu contributo. Acho que poderia ser muito positivo para a sociedade toda, não só para os trabalhadores do sexo, porque acho que uma sociedade que seja mais justa, menos opressiva, que seja menos discriminatória, é uma sociedade que é melhor para todos. Eu, pelo menos, sentiria-me melhor se vivesse numa sociedade que tratasse os trabalhadores do sexo de outra forma.

Suzana F. - Agora com esse projeto de lei da Ana Loureiro ter ido para votação, os media estão todos em cima deste assunto, você acredita que eles poderiam ter um papel importante na humanização e acabar com os estigmas?

Alexandra OliveiraAcredito. Há uns anos tive uma estudante de mestrado, a Lara Ferreira, que analisou durante um ano todas as notícias sobre prostiuição que saíram em dois jornais diários, e aquilo que se conclui é que a imagem que é passada é muito negativa, associando a prostituição ao crime e à violência. Analisando um corpo de notícias que era considerável, concluiu-se que, na maioria das vezes, as prostitutas são descritas como vítimas, vítimas de alguém que explora pessoas, que são passivas e sem capacidade de determinação. São sempre mulheres cis: de todas as notícias que ela analisou, não há uma única notícia que fale de homens ou de mulheres trans. E é essa imagem que é passada. Quando a maioria das notícias associa prostitução e tráfico, as pessoas em geral, que não têm outro contacto com a prostituição, ficam a achar que todas as mulheres são traficadas.

Os meios de comunicação social tinham aí um papel muito importante também para ajudar a veicular uma outra imagem dos trabalhadores do sexo. Há alguns que o fazem. Há alguns trabalhos jornalísticos que são importantes, outros nem por isso, e é aí que os projetos de intervenção podem ter um papel importante. Muitas vezes os meios de comunicação social aproximam-se de quem está mais próximo do trabalho sexual, sejam investigadores, sejam técnicos interventores, para fazer reportagens. Aí os técnicos e investigadores tem um papel importante ao dizer “Ok, mas qual é a sua visão sobre isso? Como vê as pessoas que fazem prostuição ou trabalho sexual? Qual é a imagem que quer dar? Ok, se calhar podíamos não ir por aí. Se calhar podemos dar outra imagem.”
Não é interferir com o trabalho de um outro profissional, é dizer “se calhar essa imagem que tu tens de que as mulheres que estão no trabalho sexual são todas vítimas de tráfico e exploração sexual, não corresponde à realidade, por que tens essa ideia?”. E acrescentar: “Eu conheço bem o terreno e não é assim, há muitas mulheres que não são vítimas de tráfico e exploração sexual, que são autónomas e que estão a ganhar o seu dinheiro”.

E agora os próprios trabalhadores do sexo, com o coletivo que se constituiu, que é bom que sejam contactados pela comunicação social, podem também ter este trabalho mais pedagógico de tentar perceber que imagens e ideias vão ser passadas… se forem ouvidos.

Finalmente chegamos ao fim desta entrevista.

Quero agradecer muito à Dra. Alexandra pela disponibilidade, contribuição e acima de tudo pela paciência na edição desta entrevista.

Espero que quem leu até aqui saiba que ainda há muito o que ser transformado na sociedade, mas que se cada um fizer a sua parte, nem que seja um pouquinho, este estigma cultural colocado sobre xs trabalhorxs sexuais vai diminuir com o tempo.

E se você precisa de algum tipo de apoio psicológico ou médico, procure ajuda, há diversos projetos que fazem um trabalho fantástico junto a trabalhadorxs sexuais.

Deixo o link do site do Plano Aproxima onde há uma lista extensa de centros de rastreio, profissionais de saúde, apoio jurídico, centros de distribuição de material preventivo e informativo, entre outros serviços direcionados a profissionais do sexo.

Um beijo grande!

Suzana F.

Sobre o Autor

Suzana F.

Suzana F.

Suzana F. é mente aberta, observadora e crítica por natureza. Apaixonada por literatura, ama ler e escrever sobre sexo. 

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